Entrevista de Martin-Barbero ao caderno Mais, da Folha de São Paulo, publicada em 23 de agosto.
Comunidades falsificadas
Filósofo espanhol diz que a utopia de democracia direta e
igualdade total na internet é mentirosa e ameaça minar as práticas de
representação e participação políticas reais
RENATO ESSENFELDER
DA REDAÇÃO
Com a emergência de gigantescas redes sociais virtuais, como o
Facebook, a internet configura a sua utopia máxima: todos somos iguais.
E, se somos todos iguais, não precisamos mais de eleições, pois não
precisamos ser representados. Todos nos representamos no espaço
democrático da internet.
O raciocínio é tentador, mas, para o filósofo espanhol Jesús
Martín-Barbero, é mentiroso -e temerário. “Nunca fomos nem seremos
iguais”, ele diz, e na vida cotidiana continuaremos dependendo de
mediações para dar conta da complexidade do mundo, seja a mediação de
partidos políticos ou a de associações de cidadãos.
Martín-Barbero vê a internet como um dos fatores de desestabilização
do mundo hoje, que não pode ser pensado por disciplinas estanques.
Mundo, aliás, tomado pela incerteza e pelo medo, que nos faz sonhar com a
relação não mediada das comunidades pré-modernas. O filósofo conversou
com a Folha durante visita a São Paulo, na semana passada.
FOLHA – Desde 1987, quando o sr. lançou sua obra de maior
repercussão ["Dos Meios às Mediações", ed. UFRJ], até hoje, o que mudou
na comunicação e nas ciências sociais?
JESÚS MARTÍN-BARBERO – Estamos em um momento de pensar o
conceito de conhecimento como certeza e incerteza. A incerteza
intelectual dos modernos se vê hoje atravessada por outra sensação: o
medo. A sociedade vive uma espécie de volta ao medo dos pré-modernos,
que era o medo da natureza, da insegurança, de uma tormenta, um
terremoto. Agora vivemos em uma espécie de mundo que nos atemoriza e
desconcerta.
O medo vem, por exemplo, da ecologia: o que vai acontecer com o planeta,
o nível do mar vai subir? A natureza voltou a ser um problema hoje,
como aos pré-modernos. Depois vem o tema da violência urbana, a
insegurança urbana. Por toda cidade que passo, de 20 mil a 20 milhões de
habitantes, há esse medo.
Como terceira insegurança, que nos afeta cada vez mais, aparece a vida
laboral. Do mundo do trabalho, que foi a grande instituição moderna que
deu segurança às pessoas, vamos para um mundo em que o sistema necessita
cada vez menos de mão de obra. O mundo do trabalho se desconfigurou
como mundo de produção do sentido da vida.
FOLHA – Nesse mundo de incertezas, como se comporta a noção de comunidade? Como ela aparece em redes virtuais como o Facebook?
MARTÍN-BARBERO – Acho que ainda não temos palavras
para nomear esse fenômeno. Falamos em rede social, mas o que significa
social aí? Apenas uma rede de muita gente. Não necessariamente em
sociedade. Há diferenças entre o que foi a comunidade pré-moderna e o
que foi o conceito de sociedade moderna.
A comunidade era orgânica, havia muitas ligações entre os seus membros,
religiosas, laborais. Renato Ortiz [sociólogo e professor na
Universidade Estadual de Campinas] faz uma crítica muito bem feita a um
livro famoso de [Benedict] Anderson, que diz que a nação é como uma
comunidade imaginada ["Comunidades Imaginadas", ed. Companhia das
Letras], principalmente por jornais e a literatura nacional.
É verdade, são fundamentais para a criação da ideia de nação. Mas Renato
Ortiz diz que há muito de verdade e muito de mentira nisso. O que
acontece é que, quando a sociedade moderna se viu realmente configurada
pelo Estado, pela burocracia do Estado, começou a sonhar novamente com a
comunidade. Era uma comunidade imaginada no sentido de querer ter algo
de comunidade, e não só de sociedade anônima.
Falar de comunidade para falar da nação moderna é complicado, porque se
romperam todos os laços da comunidade pré-moderna. Eu diria que há aí um
ponto importante, considerando que no conceito de comunidade há sempre a
tentação de devolver-nos a uma certa relação não mediada, presencial.
Essa é um pouco a utopia da internet.
FOLHA – Qual utopia?
MARTÍN-BARBERO – A utopia da internet é que já não
necessitamos ser representados, a democracia é de todos, somos todos
iguais. Mentira. Nunca fomos nem somos nem seremos iguais. E portanto a
democracia de todos é mentira. Seguimos necessitando de mediações de
representação das diferentes dimensões da vida. Precisamos de partidos
políticos ou de uma associação de pais em um colégio, por exemplo.
FOLHA – As comunidades virtuais da atualidade têm pouco das comunidades originais, então?
MARTÍN-BARBERO – Quando começamos a falar de
comunidades de leitores, de espectadores de novela, estamos falando de
algo que é certo. Uma comunidade formada por gente que gosta do mesmo em
um mesmo momento. Se a energia elétrica acaba, toda essa gente cai.
É uma comunidade invisível, mas é real, tão real que é sondável, podemos
pesquisá-la e ver como é heterogênea. Comunidade não é homogeneidade.
Nesse sentido é muito difícil proibir o uso da expressão “comunidade”
para o Facebook. Mas o que me ocorre ao usarmos o termo “comunidade”
para esses sites é que nunca a sociedade moderna foi tão distinta da
comunidade originária.
O sentido do que entendemos por sociedade mudou. Veja os vizinhos, que
eram uma forma de sobrevivência da velha comunidade na sociedade
moderna. Hoje, nos apartamentos, ninguém sabe nada do outro. Outra
chave: o parentesco. A família extensa sumiu. Hoje, uma família é um
casal. O que temos chamado de sociedade está mudando. Estamos numa
situação em que o velho morreu e o novo não tem figura ainda, que é a
ideia de crise de [Antonio] Gramsci.
FOLHA – A proposta de sites como o Facebook não é exatamente de fazer essa reaproximação?
MARTÍN-BARBERO – Creio que há pessoas no Facebook que,
pela primeira vez em suas vidas, se sentem em sociedade. É uma questão
importante, mas não podemos esquecer da maneira como nos relacionamos
com o Facebook.
Um inglês que passa boa parte de sua vida só, em um pub, com sua grande
cerveja, desfruta muito desse modo de vida. Nós, latinos, desfrutamos
mais estando juntos.
Evidentemente a relação com o Facebook é distinta. O site é real, mas a
maneira como nos relacionamos, como o usamos, é muito distinta. O
Facebook não nos iguala. Nos põe em contato, mas nada mais.
FOLHA – De que maneira essas questões devem transformar os meios de comunicação?
MARTÍN-BARBERO – Não sei para onde vamos, mas em muito
poucos anos a televisão não terá nada a ver com o que temos hoje. A
televisão por programação horária é herdeira do rádio, que foi o
primeiro meio que começou a nos organizar a vida cotidiana. Na Idade
Média, o campanário era que dizia qual era a hora de levantar, de comer,
de trabalhar, de dormir. A rádio foi isso.
A rádio nos foi pautando a vida cotidiana. O noticiário, a radionovela,
os espaços de publicidade… Essa relação que os meios tiveram com a vida
cotidiana, organizada em função do tempo, a manhã, a tarde, a noite, o
fim de semana, as férias, isso vai acabar. Teremos uma oferta de
conteúdos. A internet vai reconfigurar a TV imitadora da rádio, a rádio
imitadora da imprensa escrita… Creio que vamos para uma mudança muito
profunda, porque o que entra em crise é o papel de organização da
temporalidade.
FOLHA – A ascensão da internet e da oferta de informação
por conteúdos suscita outra questão, ligada à formação do cidadão. Não
corremos o risco de que um fã de séries de TV, por exemplo, só busque
notícias sobre o tema, alienando-se do que acontece em seu país?
MARTÍN-BARBERO – Antigamente, todos líamos,
escutávamos e víamos o mesmo. Isso para mim era muito importante. De
certa forma, obrigava que os ricos se informassem do que gostavam os
pobres -sempre defendi isso como um aspecto de formação de nação.
Quando lançaram os primeiros aparelhos de gravação de vídeo, disseram-me
que isso era uma libertação: as pessoas poderiam selecionar conteúdos.
Mas esse debate já não é possível hoje. Passamos para um entorno
comunicativo, as mudanças não são pontuais como antes. A questão não é
se eu abro ou não abro o correio. Não quero ser catastrofista, mas o
tanto que a internet nos permite ver é proporcional ao tanto que sou
visto. Em quanto mais páginas entro, mais gente me vê. É outra relação.
Temos acesso a tantas coisas e tantas línguas que já não sabemos o que
queremos. Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é
importante. Mas o problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o
que fará o sistema educacional para formar pessoas com capacidade de
serem interlocutoras desse entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV,
mas desse entorno de informação em que tudo está mesclado. Há muitas
coisas a repensar radicalmente.
QUEM É JESÚS MARTÍN-BARBERO
DA REDAÇÃO
Nascido na Espanha, mas radicado na Colômbia, Jesús Martín-Barbero é
doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Louvain, na Bélgica, e
coordenador de pesquisa da Faculdade de Comunicação e Linguagem da
Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá.
Autor popular entre estudiosos da comunicação no Brasil, estuda o
fenômeno sob enfoque cultural. Propôs em sua visita a São Paulo na
última segunda que a área seja pensada como “nebulosa” -uma região sem
fronteiras nem centro.
Ele esteve na cidade para aula magna de lançamento do Fórum Permanente
de Programas de Pós-Graduação em Comunicação do Estado de São Paulo.
Fonte: Folha de São Paulo (“MAIS”), em 23/08/2009
Retirado de: http://ppgcom.espm.br/blog/?p=889